segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Autodidacta, marginal ao circuito das artes, desconcertante,
João Cristovão de 50 anos, escapa ao perfil convencional do pintor. Considerando-se antes de mais um artesão, o seu discurso tímido parece desconhecer as coordenadas do seu próprio universo que se recusa a formalizar, a não ser em breves e hesitantes traços. E no entanto as suas telas rodeiam-nos no luxo exuberante de uma linguagem eminentemente plástica, onde não por acaso as formas, as linhas, as cores e os espaços, parecem, como é característico da modernidade, deter uma autonomia bem marcada em relação ao real, de onde emergem.
 

     Maria João Fernandes

EXPOSIÇÃO "ENVELOPE DE VERÃO" NOVEMBRO 2013 - GALARIA S.MAMEDE#LISBOA











segunda-feira, 4 de julho de 2011

      A VIDA DAS IMAGENS

NA PINTURA DE JOÃO CRISTOVÃO

   
“A arte tem tudo a ver com a vida”

        Robert Rauschenberg



Por: Maria João Fernandes




    Autodidacta, marginal ao circuito das artes, desconcertante, João Cristovão de 50 anos, escapa ao perfil convencional do pintor. Considerando-se antes de mais um artesão, o seu discurso tímido parece desconhecer as coordenadas do seu próprio universo que se recusa a formalizar, a não ser em breves e hesitantes traços. E no entanto as suas telas rodeiam-nos no luxo exuberante de uma linguagem eminentemente plástica, onde não por acaso as formas, as linhas, as cores e os espaços, parecem, como é característico da modernidade, deter uma autonomia bem marcada em relação ao real, de onde emergem. Autonomia de uma expressão criadora das suas próprias leis, que provém do real, como os sonhos e não como as réplicas mais ou menos naturalistas de uma pintura figurativa. Dos sonhos, das memórias, das imagens fugitivas  que o tempo impiedosamente engole.
Jean-Michel Basquiat, C. Oldenburg, Robert Rauschenberg, Mimmo Rotella, a Arte Pop são referências marcantes na sua criação de um imaginário citadino, expressão plástica para o tempo e para o espaço de uma intimidade inquietante porque se recusa a apagar os seus excessos, porque não abdica do excedente de informação que nos submerge no dia-a-dia e o mistura com os dados preciosos e as lembranças queridas. E apesar disso não há arbitrariedade neste processo, antes uma organização, uma selecção rigorosas que nascem de um diálogo bem orquestrado entre o consciente e o inconsciente, em que este no entanto parece deter o primeiro lugar.
O real é decantado pelo sonho e por sua vez os sonhos que nesta pintura desenrolam o seu fio narrativo, criam a sua própria realidade, esfumado, esbatido tecido alternativo e perturbador onde estremece ainda assim a vida, no sensual colorido das substâncias, no teclado de luz e sombras, nos farrapos soltos de uma linguagem que balbucia os instantes sonhados ou vividos, ainda que simplesmente no plano da memória ou da fantasia.
Perpassa diante dos nossos olhos um palimpsesto de luxuosas teias de imagens sobrepostas e desfeitas num processo que lembra a “frottage”, fantasias do visível, espelhos coados pela memória ou simplesmente devolvidos a uma essência primeira, intraduzível. Como sabê-lo? Definir esse processo seria captar o mistério do real, aqui presente, saber de que modo ele se mistura com a ideia que dele temos, com a fantasia que nele dorme, como se revolta e dita as suas próprias leis.
    Mistério do espaço, do mundo de fora e do mundo de dentro, sem fronteiras, do olhar do pintor que busca um modo de nos comunicar este tecido de imagens insubmissas. Estas imagens vão ao seu encontro e da tela onde pousam um instante, personagens que se tornam espectadores  de um teatro do absurdo de que igualmente fazem parte. Lírica e dramática esta cena, desfile de bailarinas, meninas nuas, figuras do cinema e da banda desenhada, rostos, palavras, sinais, farrapos de memórias de espaços antigos e recentes, palco nocturno e diurno de uma vida que estremece  no halo da sua frágil presença e recusa desaparecer.
    Rabiscos, escritas sobre o muro da solidão partilhada, a pintura dentro da pintura, o bater de um coração cujas artérias levam as cores ao centro de uma exaltação perdida, de onde regressam sem ter conseguido absorver o seu mágico segredo, mas pálidas e dolorosas na sua doçura que ainda assim transmite um desejo de manter viva a fogueira da vida.
    Esta é a vida mesma das imagens, esta a gramática  da própria pintura na actualidade deste olhar. Assim nascem, cintilam um instante e permanecem, entre a memória e a assombração, portadoras de uma nova vida que nos desafia e enfrenta olhos nos olhos o seu autor. Artesão e mágico, João Cristovão, como Jean Christophe de Romain Roland, representa talvez, sem o saber, uma parte do intemporal enigma da arte que hoje transparece nas imagens da sua pintura.